Não menos importante que o tema “pandemia de COVID-19”, a humanidade vem, nos últimos dias, se preparando para a discussão de assuntos que, assim como as doenças causadas por vírus, matou e mata muitas pessoas, ao longo de séculos: o racismo e a escravidão.

Desencadeados pela morte de George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos, vários protestos vêm ocorrendo, em diferentes cidades do mundo todo.

No Brasil, semana passada, tivemos a notícia da morte do menino Miguel, de 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Renata. A tragédia, supostamente (considerando que o caso ainda está em fase de investigação e não cabe a ninguém, senão às autoridades, julgar) ocasionada pela negligência da patroa Sari Corte teve grande repercussão e, por se tratar de mãe e criança pretas, também gerou manifestações de grupos antirracistas.

No dia 05/06/2020, no “Greg News”, Gregório Duvivier, ator, humorista, roteirista e escritor brasileiro, fez seus espectadores refletirem sobre as condições do trabalho doméstico no país, a representatividade da classe no Congresso Nacional, as posturas escravocratas e conservadoras de muitas pessoas ainda no século XXI e, ao final, nos provocou a olhar para dentro da nossa própria casa.

Nós, senhores de engenho – digo, celetistas, profissionais liberais, servidores públicos, empresários – dependemos, todos os dias, para garantir nossa renda mensal das escravas – digo, trabalhadoras domésticas – que cuidam de nossos filhos, roupas, sapatos, camas, banheiros, comida e cães. Sem elas, é provável que grande parte dos homens e mulheres bem sucedidos, profissionalmente, não teriam a oportunidade de se destacarem em suas atividades, porque precisariam dedicar grande parte do tempo aos cuidados domésticos.

É prudente lembrar que essas escravas – digo, trabalhadoras domésticas – também têm filhos, roupas, sapatos, camas, banheiros, comida e cães. Essas mães, muitas vezes, deixam de educar os seus filhos, para educar os nossos. Cuidam de nossas crianças, enquanto as suas são lançadas à sorte do sistema precário da educação pública. Acompanham nossos filhos, quando os seus devem aguardar a fila dos postos de saúde. Algumas patroas inclusive reclamam quando as empregadas, mães, faltam ou se atrasam para levar os filhos ao médico.

A “PEC das domésticas” de 2013 e Lei Complementar que regulamentou o trabalho, em 2015, serviu para dar o mínimo de dignidade (direito constitucional) àquelas e àqueles que sequer tinham jornada de trabalho definida. Ficavam à disposição dos patrões. Aliás, como bem salientado por Duvivier, até dormiam no trabalho, numa aberração da arquitetura brasileira conhecida como DCE – dependência completa de empregada.

Em alguns casos, este DCE também era usado para acolher parentes vindas do interior, que trocavam o trabalho exaustivo por uma cama e o direito a frequentar a escola na capital. Mal sabiam elas que a dívida jamais seria paga, aos barões do café – digo, tios e tias.

Ainda que regulamentados, os direitos dos trabalhadores domésticos estão longe da realidade de outras classes trabalhadoras. Voltando ao Prefeito de Tamandaré, esposo de Sari e patrão de Mirtes, aparentemente ele achava tão penoso pagar pelos serviços da empregada que empurrou para a administração pública arcar com os salários dela e de sua mãe. O suposto ato de improbidade administrativa vai muito além de corrupção. O empregador não considerou honrado retribuir pelo trabalho de duas escravas – digo, empregadas domésticas – com seu próprio dinheiro. Talvez achasse mais justo que os cofres públicos pagassem pelo luxo. Talvez não achasse que as duas merecessem o seu dinheiro.

Muito falta para acertar a conta da integridade no trabalho doméstico. Anos de escravidão, racismo, discriminação, ausência de dignidade não são pagos com algumas manifestações. Mas é um começo. É um suspiro de esperança de que a sociedade tenha a grandiosidade de reconhecer o quanto devemos a esta classe.

É um momento oportuno para a humanidade pensar em quantas vidas de pretos e pretas foram tiradas para garantir o luxo de outrem. É um ótimo estágio para que nós, empregadores, sejamos capazes de reconhecer que quem trabalha em nossa casa, por mais defeitos que – como nós – tenham são seres humanos, não só de cor, mas de sangue, sentimento e alma, iguais as nossas.